– Tiaaa, acabou o bacon!
– Nossa, ta cheio né… Ainda mais que é apartamento.
– A gente comprou a cafeteira pela internet e ganhou 300 cápsulas!
Na missa de 49 dias, uma confusão de conversas reinava no pequeno apartamento. A missa era só para a família – ou seja, apareceu também a parentada, os amigos e quem mais se sentiu à vontade para rezar pela última vez para que minha obá descansasse em paz. Comparando, foi totalmente diferente da primeira missa, na qual havia apenas silêncio, lágrimas e burburinhos de condolências e indignação pela morte repentina e precoce da dona Satiko.
A obá nasceu no Brasil, no mesmo dia que o Roberto Carlos, de quem ela gostava muito. Sempre alegre, ela preferia sair para comer do que cozinhar. Todo mundo gosta dela, desde os tios-avós isseis (1ª geração) até as crianças da família. No kaikan de São Mateus também, muitas amigas estão sentindo falta da Satiko. Eu sinto falta das mensagens no Whatsapp, cheias de beijinhos e carinhas. Uma fofa.
Por ser nissei (2ª geração), falando perfeitamente o português, japonês e o uchinaaguchi, parece que a obá sempre serviu de elo entre os isseis e a geração dos filhos e dos netos. Há pouco tempo, ela me disse que quem ensinou o uchinaaguchi pra ela foi o meu oji (marido dela). E assim, quando a gente conversava, ninguém ficava de fora e a casa da família Okuhama era sempre unida e animada.
Além disso, sempre foi a obá que cuidou da parte espiritual da família. Qualquer problema, chama a yutá (xamã okinawana). E assim, ela foi virando expert em assuntos de antepassados e butsudan, misturando com idas a centros espíritas e igrejas católicas. Nas últimas missas de parentes, quem ajudava era ela – o pratinho tem que ser assim, tem que colocar 15 manju, esse tamanho aqui não serve…
E de repente, obá se foi. O que?! Como?! E agora?!
O dia seguinte foi estranho – todos atordoados, mas tendo que seguir cuidando de detalhes práticos – burocracias, telefonemas, flores. Pra mim nada fazia sentido e eu só conseguia chorar e pensar que nunca mais ia ver a obá. E logo depois, a cremação e todas as pessoas me cumprimentando e eu não conseguia ver nada porque minha lente embaçou com o sal das lágrimas. Mas os abraços sinceros confortaram esse que foi o pior dia da minha vida. E também ajudaram as palavras carinhosas de parentes, amigos e de pessoas que eu nunca tinha visto na vida, mas que estavam todas ali mostrando que se importavam com a dona Satiko e sua família.
E na outra semana, a primeira missa… Mas como faz?!
De repente, filhos e netos se viram com a responsabilidade de fazer uma missa que correspondesse aos desejos da obá – ela que sempre se importou com essas coisas de butsudan. E vieram as dúvidas e os preparativos. No final, decidimos fazer a primeira missa em casa, com a yutá, uma missa num templo budista, com a galera toda, e uma missa na igreja católica, pra quem quisesse ir. Olha, obá, como a gente se preocupa para que tudo saia do jeito que obá queria! Tudo isso demandou reuniões diárias na casa do oji. Ao empacotar as toalhinhas para entregar na missa do templo, lembro de termos recomeçado a sorrir, lembrando da obá e rindo das palhaçadas dos meus primos.
E aí se seguiram as 7 missas, 1 por semana. Durante esses 49 dias, a pessoa que faleceu ainda não se desligou totalmente do plano terreno e permanece um tempo aqui entre nós. Os móveis e TV são cobertos com pano branco como sinal de luto. Um butsudan é montado no quarto da pessoa, com alguns objetos do dia-a-dia, como roupas, sapato, bolsa, celular, creme, relógio…Nesse butsudan temporário, acende-se somente 1 senko (e não 3, como no butsudan dos antepassados). Como ela ainda sente necessidades terrenas, é preciso oferecer refeições todos os dias (café da manhã, almoço, café da tarde e janta). E a casa não pode ficar só.

E foi assim que passamos a frequentar a casa do oji todos os dias, uns para cuidar da casa e da obá durante o dia e outros para jantar junto com o oji. E toda terça-feira tinha missa. Nessas ocasiões, as cunhadas da obá vinham ajudar. O mais irônico é que a obá ensinou para as cunhadas, mas não ensinou para as filhas. Assim, as tias-avós vinham com anotações: Olha, a Satiko ensinou assim. A obá ajudou elas, e elas que ajudaram na missa da obá. E depois, à tarde e à noite, os demais parentes vinham tomar chá, comer comida de missa e conversar.
E, durante 49 dias, foram todos esses rituais diários e semanais que ajudaram a superar a dor e unir a família. Não será esse o objetivo da missa? A função de colocar x quantidade de cada comida cortada de tal forma será para enviar a pessoa ao céu? Ou será que isso serve mais para termos que chamar a yutá e as tias, mantendo-nos unidas à comunidade e ao sentimento de ser uchinanchu e de fazer coisas de uchinanchu?

Recentemente, no dia 12 de junho, foi realizado o “Ofício Religioso em Memória dos Pioneiros e seus descendentes”, na Associação Okinawa Kenjin do Brasil. Mais uma vez, dedicados ao bem estar da obá, enviamos seu nome e comparecemos ao evento. (Coincidentemente – ou não – eu já havia me comprometido a participar da cerimônia, encarregada de levar flores e chá ao som do sanshin.) Nessa ocasião, a Monja Coen falou sobre o sofrimento do uchinaanchu na guerra e na imigração: Sozinhos somos fracos, mas juntos somos fortes. Os uchinanchus se unem para superar sua dor. Que bom que somos uchinanchus e tivemos que fazer as trabalhosas 7 missas. Obrigada, obá, por ensinar a gente a valorizar o cuidado com as tradições e os antepassados.
Numa das últimas conversas a sós com minha obá, ela perguntou como eu estava:
– Ah, vou indo, como sempre…
– Que isso, Sá, menina bonita não fica triste.
Eu ri.
– Que que tem a ver uma coisa com a outra, obá?
– Não fica assim, você vai ficar bem!
E hoje, depois de 2 meses, penso que obá foi embora muito cedo, pois não deu tempo de me ensinar a sorrir e ficar bem como ela. Depois das 7 missas e toda a coisa da união familiar, a tristeza, a dor e o sentimento de desamparo ainda voltam com força. Algumas vezes eu fraquejo, mas uma coisa me move – eu quero ser igual minha obá. Não dizem que a irmã mais velha é a guardiã espiritual da família? Ultimamente, é daí que tenho tirado forças pra continuar a aprender – sou eu que vou proteger a minha família um dia, como a obá fez com todos nós. Obrigada por tudo, obá.

*Dedico esse meu post à minha obá Satiko Okuhama e à minha família, e também a todos ojis e obás que já se foram, deixando-nos preciosos ensinamentos.

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